Adega dos Lombinhos

(by Mr. Budget)

Querida Miss Blue, equilibrar é preciso, afinal de contas tenho budget no nome e na carteira. Vou-lhe contar uma experiência que é de outro tempo, mas desta vez no bom sentido, acredite-me.

A quatro dias do fim de 2011 reúno-me para almoçar com dois amigos na Adega dos Lombinhos, acto logístico de extremo egoísmo porque a sala tem apenas 14 lugares sentados e um ficará vazio à minha frente. A verdade é que nesta adega diminutiva todos são obrigatoriamente íntimos tal é a exiguidade do espaço. A cozinha não é uma cozinha, é uma kitchenette, o hall de entrada é a sala principal que dá para a kitchenette cuja chaminé está praticamente na rua. Por cima das cabeças dos comensais estão as reservas de vinho e uma ou outra palete com sumos, para os comichosos. Penso que existirá uma casa de banho, algures atrás de uma pipa, mas nunca investiguei. As paredes estão forradas a mármore e o balcão só não mantém a pedra porque os regulamentos da C.M.L. obrigaram o dono a render-se ao alumínio.

Chega o empregado com o seu bigode e pergunta de rompante “Então, são três?” Respondemos que sim e as perguntas seguintes são “Com ovo?” e “Com ou sem arroz?” Deliberámos três ovos e exclusividade para a batatinha. Não lhe parece reconfortante, Miss Blue? Nesta adega há mais comer (“comida” é palavra que ali não cabe) para lá dos lombinhos, mas recusá-los é como ir a Roma, servirem-lhe o Papa às fatias e preferir comer babaghanoush. Rude, portanto. “E para beber?”, “Vinho para os três” foi a resposta do meu amigo M., assim sem demais. Reconfortante, pois claro. Ainda chegou um queijinho, nem seco nem mole, nem de vaca nem de ovelha, que não tivemos tempo de dizimar antes da chegada das três travessinhas de lombinhos e da travessona de batatas para compartir. Os lombinhos, além de queridos, são “inhos” porque são fininhos no corte. Um qualquer chef cheio de chico-espertice-saloia-gourmet poderia chamar-lhes carpaccio de lombo, mas isso seria tão parvo como chamar farfalle a uma laçarote ou kitchnette a uma cozinha americana ou até chef a um homem da grelha. Certo é que estes lombinhos são a melhor iguaria que se pode provar na baixa lisboeta, ao mesmo nível dos croquetes do Gambrinus, só que mais finos, perdão, fininhos.

As únicas dúvidas que surgiram foram sobre a doçura do vinho. Seria morangueiro? Cortado com açúcar? Disseram-nos que não, cortado com vinho novo, ali em Merceana, perto de Torres Vedras. Ficámos tão esclarecidos como a garrafa sem rótulo. Tudo comido, dose extra de batatas incluída, chegou a pergunta feita apenas por iniciados “Tem café?” “Não há, mas temos arroz doce.”
E assim foi - debaixo do olhar de um velhinho de 99 anos, de condutores da Carris, de designers gráficos, de ciganos que vendem orégãos aos turistas e de outros clientes habituais - rápido, saboroso e com uma conta de €30,30 que parecia fatiada de propósito para nós.

De volta à rua, os meus amigos foram trabalhar e eu fui passear os lombinhos. Quando dou por mim estou a meter o Euromilhões no quiosque vermelho em frente ao Tivoli, onde descobri que todas as semanas aparece um cliente habitual – o Capitão – sempre acompanhado pelo mesmo taxista e o mesmo envelope de dinheiro para as suas apostas. Pouco depois, entro completamente às escuras para a sessão das 15h30 da Cinemateca e sou recebido por “Encantamento” realizado por Irving Reis, um melodrama de 1948 com David Niven, fantasmas e uma casa narradora.

Acreditou-me?


(by Miss Blue)


Acreditei, pois. E segui o conselho, a caminho dos lombinhos prometidos e com muita vontade de experimentar tão deliciosa iguaria. Achei, Mr Budget, que tinha pintado um cenário exageradamente pequeno quando escreveu a sua crónica. Por isso, quando entrei neste recanto da Rua dos Douradores – aliás o único ponto de luz e de vida em muitos metros, o que constatei com alguma tristeza – entrei como se um espaço largo me aguardasse. O que se provou um erro, uma vez que quase acabei sentada na mesa que fica na ponta oposta. 
Esta adega é uma sala, TO em plena baixa lisboeta, com apenas quatro mesas, uma delas com dois lugares. Mas, usando uma analogia futebolística que deve ser cara não só ao dono da casa como aos frequentadores, vale a pena ir a esta adega jogar em 4-1-2. O ambiente, como imediatamente se adivinha, varia entre os pintores pintalgados e os bancários engravatados; entre quem leva o iPad e quem entra de boné, entre senhoras de saltos e velhotas com gatos.
E por falar em senhoras, é melhor levar uma roupa que não se estime em particular e prender o cabelo antes de entrar. O cheiro dos petiscos – e logo na montra somos tentados com uns croquetes e pasteis de bacalhau que, além do tamanho respeitável , têm a cor dourada da fritura perfeita – cola-se a nós e só sai na máquina.
É que esta cozinha (chamou-lhe kitchnette?) fica dentro da sala. E desta cozinha saem os lombinhos, que na verdade são febras de porco incrivelmente macias e fininhas, cheios de limão e de batatas fritas de verdade – daquelas que ficam ligeiramente acastanhadas porque a época de sementeira foi só há duas semanas atrás e para termos batatas novas das boas vamos ter de esperar. Mas estas batatas sabem a batatas e o arroz que vem por cima dos lombinhos também sabe a arroz e o ovo estrelado parece ter sido frito ao sol, tal a brancura da clara e o laranja forte da gema. Uma dose e meia chegou perfeitamente para duas pessoas, embora a pura gula dê vontade de pedir uma dose para cada.
Não se esperem palermices como coca-cola zero, que só há da normal. Também há água e vinho e cerveja e fruta fresquíssima, cortada e arranjada na hora. Quando pedimos para acompanhar a laranja com canela, o dono, sem qualquer tipo de dúvida ou objecção, voltou para a mesa com um tupperware de canela e uma colher de café. Serviço simpático e  profissional, numa casa onde não há café nem multibanco. O que há, e muito, são motivos para voltar.