Casa Cid - 12 passos para chegar ao umami

(by Mr. Budget)

12. São 6h30 da manhã de domingo e estou na Casa Cid. Como vim aqui parar, Miss Blue, não é piquenique, nem propriamente pequeno-almoço. Estou na companhia de quatro mulheres, duas conhecidas e duas desconhecidas, a iniciar-me num paladar que soube doze horas antes que existia. Chama-se umami, é o quinto gosto. Cinco anos depois do professor Kikunae Ikeda ter feito a descoberta do umami (1908) esta casa de pasto abria as portas nas traseiras do Mercado da Ribeira. A esta hora está cheia de bêbados, com diferentes níveis de alcoolemia e de capacidade de serem inoportunos. A fome pós-noitada apertou e o hambúrguer do Cid falou mais alto, infelizmente falou queimado por fora e cru por dentro. E assim a expectativa morreu solteira.

11. Às 6h02 o Jamaica expele-nos para a madrugada e o conselho das desconhecidas acabadas de conhecer é atacar o hambúrguer de uma certa tasca, com tudo aquilo a que tem direito: salada, mostarda, ketchup, maionese e picante mortífero. Tudo muito high cholesterol e low budget. Um hambúrguer e uma bifana pagaram-se com uma nota de cinco e ainda houve troco. Pelo que me disseram, as moelas, a feijoada à transmontana, os torresmos e os rissóis de leitão acrescentam fama à casa. Noutro madrugada tiraremos as teimas. A Casa Cid abre todos os dias às quatro da manhã e fecha às 19h00, excepto ao domingo que fecha ao meio-dia.

10. Entre as quatro e tal e as cinco e picos o Jamaica está fértil em encontrões e alguns passos de dança ao som de música que há pelo menos quinze anos deixou de ser novidade. Metallica, Peal Jam, Fat Boy Slim, Nirvana e Red Hot Chilli Peppers estavam no menu, acompanhados por gin de marca indiferenciada. Três raparigas começam a conversar por cima da nostalgia musical, duas do barlavento algarvio e uma brasileira. Quanto à conversa, diga-se que serviu de aperitivo para o umami.

9. Por volta das 04h14 entramos no Jamaica passando à frente da multidão que se acotovela à porta, a nossa senha secreta foi alguma candura e um xixi muito iminente. Resolvido o chamamento da natureza, ficamos para dançar, sem um pingo de vergonha.

8. Os ponteiros rondam as 2h00 da manhã e estamos no Lounge. A música está bastante funky e é difícil não estar a dançar. Está um ambiente de Verão em pleno Inverno, regado ora a água das pedras solitária ora a gin tónico Tanquerey. Quando a música acaba e começam os planos para o futuro mais que imediato, o grupo reduz-se a apenas duas respeitáveis bebedoras de gin e eu.

7. O nosso grupo chega à Mercearia Tosca por volta das 23h00, na melhor parte da Rua Nova do Carvalho. Atacamos o vinho tinto a copo, o que talvez não tenha sido inteligente, depois dos oito vinhos diferentes que bebemos ao jantar. Entre os chuviscos na rua e o período pós-fecho, lá dentro com o Miguel (dono da Tosca e Rei do Cais do Sodré), regressámos ao vinho branco da talha, desviado do restaurante onde recebemos ensinamentos vínicos.

6. Às 22h40 apanho boleia de Alcântara para o Cais do Sodré num BMW mais comprido que uma auto-caravana tamanho familiar.

5. O nosso enólogo de serviço fez um vinho licoroso tinto da Granja-Amareleja, Alentejo (2011) que, se tivesse sido feito no Douro, seria classificado enquanto vintage de gabarito. Bebemo-lo a acompanhar cubos de queijo azul, um Cabrales, que se esfarela na boca à espera de ser entrecortado pelo doce do vinho. São 22h13 e esta dicotomia muito amargo/muito doce é um dos momentos altos do jantar. O leite creme que chegou a seguir foi praticamente ignorado.

4. Ao bater das 21h17 são servidas bochechas de porco assadas no forno com batatinhas e grelos. As bochechas vão diminuindo de tamanho deste a ponta da mesa até nós, mas o sabor está bom e o dia não é para farta-brutos. Neste momento é servido o vinho branco da talha feito pelo produtor José Piteira e pelo nosso Professor. Este vinho, feito na Amareleja segundo a tradição romana, é filtrado das talhas gigantes por um pequeno tubo onde é inserida junca, uma planta aquática cujo caule de secção triangular incha e filtra o néctar de Baco. Cá fora, o resultado é ecológico, cristalino, diferente de qualquer vinho branco que já tenha provado e, claro, sem químicos ou sulfitos. A grande provocação do jantar aconteceu a seguir, nos slides projectados pelo Professor, enquanto nos dizia que a companhia ideal para o vinho da talha seriam as Migas à Piteira, feitas pelo próprio na sua taberna da Amareleja. O aspecto era o de uma tortilha à espanhola com dois andares. Antes do sadismo vieram os filetes. Filetes é aquele tipo de prato que nunca peço num restaurante, 90% das vezes em que me esqueço desta regra, o polme sabe a detergente e o interior não tem sabor. No caso do singular filete de cherne que serviram a cada um, o polme estava crocante q.b. e o peixe estava macio e no ponto. Já o arroz de feijão que acompanhou, estava húmido mas sem grande harmonia.

3. São 20h12 e as entradas estão a ser servidas: carapaus de escabeche, pasteis de bacalhau, morcela e farinheira (pouco) assadas. Os carapaus cumpriram o seu propósito, ou seja, permitir que os alunos verificassem como um prato com muita acidez é bem acompanhado por um vinho com ainda mais acidez. O maestro da harmonia foi um Riesling da Beira Interior chamado Casas Altas. Ao mesmo tempo foi também servido um espumante Bruto de Baga, das Caves São Domingos. A versão budget seria o malogrado Casal Garcia, aprovado pelo professor para a combinação em questão. Curiosidade: o Riesling é apelidado de “crocante” devido ao gás que apresenta, no limite de parecer um vinho espumante. Ao longo do jantar os vinhos servidos mostraram que as velhas regras para combinar vinho e comida são quase sempre pura feitiçaria sem base científica, palavra de Virgílio Loureiro. Ficou também claro que a grande maioria dos vinhos “da mooooooda” são feitos para encher o nariz da mesma forma que muitas peças de roupa são feitas para encher o olho. Depois de beber e depois de vestir, apercebemo-nos que afinal o produto não cai assim tão bem. Bela analogia ao gosto feminino, não foi?

2. Por volta das 19h00 estamos em plena teoria, altura em que o professor nos fala dos cincos gostos principais dos humanos, o doce, o amargo, o ácido, o salgado e o umami. A melhor expressão do umami – também descrito como a capacidade de ser delicioso - é um hamburguer no pão com tudo a que tem direito. Isto porque o ácido do glutamato é um poderoso neurotransmissor presente nas proteínas da carne, no tomate e nos cogumelos que torna a comida mais irresistível. Seja no leite materno, no molho de soja ou na alga kombu, o glutamato é a essência do prazer de comer, do umami. E sim, as grandes cadeias de comida fast-food acrescentam glutamato enquanto aditivo alimentar.

1. Olá, são 18h30 e estou debaixo da ponte. No andar de cima do restaurante O Mercado está montada uma mesa em U para trinta pessoas que irão participar num jantar vínico com o seguinte título “A Harmonia do Vinho com a Comida”. O mestre de cerimónias é Virgílio Loureiro, homem de longa carreira na enologia, no ensino e na história do vinho. A noite promete, mas quem diria que daqui a 12 horas só me vai apetecer um daqueles hambúrgueres gordurosos, acabados de descongelar, da roulotte do Lux? Conselho harmonioso para não grávidas: quanto mais beberem, melhor a má comida sabe. Isto é o fim.