O Chinês Clandestino

(by Mr. Budget)

Estas são as instruções, Miss Blue, se a porta da rua estiver aberta, pode subir, se estiver fechada, a casa está cheia e é melhor ir (e isto é uma pista) à Cervejaria Ramiro que fica ali perto.

Ilegal Chinese 2

No primeiro andar percorremos corredores entre vários jovens chineses apressados entre a sala de jantar e a cozinha. Há 3 mesas de 4 lugares e uma mesa mais comunitária que leva cerca de 10 pessoas. Felizmente a televisão estava desligada, tal como as flores ao seu lado, de plástico. Como éramos quatro, escolhemos para partilhar. O menu veio dentro de uma mica e apesar da oferta ser muito diminuta, comparada com os chineses legais, estava concentrada em pratos interessantes e até desafiantes. Não houve consenso para pedir a língua de pato, nem mesmo um prato que acidentalmente é de fusão – a carne de porco com sabor a peixe. A verdade é que provavelmente ninguém se queixaria se o prato fosse servido numa pequena vila catalã, logo a seguir a um caviar de melão. Escolher o vinho foi fácil, só havia duas hipóteses, vinho branco e vinho tinto, ambos JP. Passemos agora à parte mais sólida da refeição. Entre os gioza (ravioli chineses) normais ou fritos, fomos para os fritos, com recheio de carne, que foram os primeiros a chegar. A seguir veio uma massa chao-min com galinha e camarão, servida numa tigela tão generosa como o caldo, um prato também com camarão e vegetais e uma dose de arroz chau-chau.

Ilegal Chinese 3

As mesas, de uma madeira tão verdadeira como as flores, não tinham toalhas, nem individuais de papel, mas estavam todas abastecidas de pacotes de lenços daqueles que se costuma ter em quartos ou casas de banho. Afinal de contas, tudo ali era caseiro. Ah, aproveito para dar uma sugestão que pode fazer toda a diferença, evite visitar a casa de banho antes de comer. (não ver foto abaixo) É que se a Miss Blue for miss para aplicar aquela regra de as casas de banho dos restaurantes serem o espelho da cozinha, a visita é capaz de lhe afectar o apetite. Já se for como eu, que gosto de coleccionar naturezas mortas em cada amontoado de objectos estranhos, talvez a experiência não interfira com a sua digestão.

A clientela era variada e pareceu-me que ninguém tinha mais de 40 anos, além de um casal de turistas que parecia japonês. Tirando ter faltado a luz uma vez, não aconteceu nada de anormal no nosso mergulho em Chinatown, entregámos o nosso papel com os números dos pedidos, comemos, bebemos, o papel foi-nos devolvido cheio de manchas de gordura, com anotações em caracteres chineses e o valor de cada prato. Preço final, 33 euros. Quanto ao juízo final, a experiência, mais antropológica que gastronómica, teve uma dose reconfortante de exotismo numa Lisboa tão próxima e tão à parte do habitual eixo Bairro Alto-Santos. Como digestivo participei numa humilhante maratona de snooker na, relativamente próxima, Academia Recreio Artístico de Lisboa, uma daquelas associações com mais anos que a república, só para sócios, e que deixam entrar quem não atrapalhar os jogos de sueca. Podia dizer mais ou ser mais específico, mas estas incursões fora da Lisboa higienizada merecem mais do que uma denúncia, merecem uma mudança de tom, Miss Blue.

Ilegal Chinese 1


(by Miss Blue)

Mr Budget, porque é que eu sigo as suas ideias? Porque é me deixo convencer pelas experiências indie? Em nome do espírito Blue, lá faço o sacrifício de ir a um dos sítios alternativos de Lisboa, cheio de pessoas igualmente alternativas, por ruas demasiado alternativas, povoadas por locais excessivamente alternativos. Fosse eu mais esperta e teria escolhido a alternativa de não ir de todo. Apesar de todos os avisos, apesar de todos os sinais que me imploravam para voltar para trás, impulsionada pela coragem bebida em dois copos na Ginjinha, lá fui por entre becos e vielas pela antiga Mouraria, atravessando o Martim Moniz e descobrindo estranhos padrões de guitarra portuguesa na calçada, bem como um considerável número de dealers nas esquinas. Chegada ao Largo da Severa e querendo sair do mesmo muito rapidamente, subi as escadas de uma casa indistinta, onde uma pequenota chinesa se divertiu a tirar-me fotografias entre risos, sem explicações. Entre salas e quartos, umas mesas improvisadas, muitas línguas misturadas no ar, com clara predominância de castelhano (nada disto faz sentido, Mr Budget) e umas anfitriãs ansiosas para nos sentar, oferecendo uma lista onde as carnes se chamam carne e os peixes se chamam peixe. 


Para quê perder tempo com minudências tais como especificar de que carne ou de que peixe se fala? Estando acompanhada por pessoas bem mais aventureiras e decididas que eu, achei por bem deixar que viessem os pratos que entendessem. E ainda bem, porque apesar dos vários caranguejos e massas e pastéis, na verdade acabei por consumir três ou quatro taças de sopa ácida picante cujos ingredientes são até hoje (misericordiosamente) um mistério. Imaginei que a fervura e a acidez eliminassem qualquer elemento estranho com que a sopa pudesse ser confeccionada – mas falhei redondamente. Não conto o que aconteceu no dia seguinte, isso fica na reclusão do meu lar, mas ensinou-me a não confiar em pessoas simpáticas que sorriem muito e apontam para listas. Foi de facto incrivelmente barato, com a quantidade (e variedade) de pratos pedidos e com as cervejas e vinhos consumidos, sem café; foi muito alternativo e cosmopolita; foi muito interessante do ponto de vista antropológico.
Mas, Mr Budget, não há cosmopolitismo ou espírito indie que compense a visão assustadora daquela casa-de-banho suja e sinistra. Muito menos que pague o bypass que teria necessariamente de fazer caso me aventurasse por aquelas ruas muito mais vezes.

(créditos da foto: Miguel Modesto)